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16 KB de Alegria
Eu nunca pensei que 16 KBytes fossem capazes de me deixar tão feliz.
São 3:00AM aqui em Paris. Acabei de chegar em casa; hoje (tecnicamente
"ontem") fomos ao nosso boteco preferido (o Hurling Pub, perto do Pantheon,
em Saint-Michel), para tomar cerveja (Guiness e Hoegaarden), em comemoração
ao término dessa semana miserável (detalhes a respeito uma outra hora). Por
incrível que pareça, com a gente foi o Yves (que, ao contrário do francês
médio, não negou fogo e quase conseguiu nos acompanhar na cerveja e
caipirinha).
Cheguei em casa meio tonto, sem muita vontade de ir dormir, e resolvi checar
os meus e-mails antes. Passeando por um site de emuladores descobri que o
jogo "Airwolf", da Ocean, nunca havia sido lançado para Spectrum (o nosso
TK-90X). Tive um acesso de nostalgia: no Brasil, "Airwolf" é "Águia de
Fogo", aquele seriado incrivelmente legal sobre Stringfellow Hawke, o melhor
piloto de helicópteros do mundo, que, sob o comando do Arcanjo, pilotava o
helicóptero mais poderoso dos anos 80 (o Trovão Azul era para maricas).
Não resisti e fui atrás da trilha sonora do seriado. A música, que sabia de
cor, despertou-me uma série de boas lembranças (algumas não muito boas, por
exemplo aquelas de como eu detestava ir à missa das 7:00PM de domingo, bem
no horário do programa). Eu não era capaz de imaginar uma madrugada mais
geek (uma madrugada MELHOR é fácil: basta acrescentar a doce-e-sempre-bela
Cyntia e agitar-antes-de-abrir). Era impossível prever o que estava por
acontecer.
Lendo os meus e-mails recebi a notícia fatídica. Alguém (especificamente o
Ricardo Pontual) finalmente conseguiu um arquivo de "Em Busca dos Tesouros".
Quase fico maluco quando leio o subject.
É preciso explicar a importância da descoberta. Comecemos do princípio,
portanto: o ano era 1986. Eu tinha 9 anos, e minha única preocupação
política era a maldita reserva de mercado brasileira. A idéia era simples:
era proibido importar computadores e software para o Brasil, porque isso
iria fortalecer a indústria nacional. O que eu via mesmo era nossa indústria
copiar, descaradamente, o projeto dos outros, e o governo impedir, de
qualquer jeito, toda e qualquer tentativa de se obter o que era realmente
divertido naqueles tempos.
Naquela época, a única potência em microinformática que eu conhecia era a
Microdigital. Eles vendiam, por aqui, clones dos microcomputadores
projetados pelo inglês Sir Clive Sinclair. No final de 1985 meus pais (e meu
irmão mais velho) voltaram de Belo Horizonte (a "capital") trazendo na
bagagem um desses projetos alternativos, o TK-85 (algo com a aparência
externa de um ZX-Spectrum e a arquitetura de um ZX-81, ambos sucessos
absolutos de vendas na Inglaterra). Até onde sei foi o primeiro computador
de São Francisco, a minúscula cidade do interior de Minas Gerais onde
cresci.
Durante anos eu disputei com meu irmão mais velho "quem sabia mais de
computação". Eventualmente, ele desistiu do combate (apesar de eu achar, até
hoje, que ele tinha um sério potencial). Por mais saudade que eu sinta
daquela época, é preciso confessar que eram tempos terríveis para um geek em
estágio embrionário: São Francisco não tinha sequer banca de revistas (o que
me obrigava a procurar desesperadamente por fascículos de "INPUT" todas as
vezes que ia a Montes Claros, a aglomeração urbana mais próxima).
Em 1987 (na verdade desde muito antes) o estado-da-arte em computação (pelo
menos a parte compreensível por um moleque da quarta série) era publicado na
Micro Sistemas, "a primeira revista brasileira de microcomputadores". Para
mim a única forma de conseguir um exemplar era através de um assinatura, que
por sinal encabeça a lista das coisas mais frustrantes que conheço. A MS
aparecia na minha caixa postal quando bem entendia: às vezes todo mês,
freqüentemente a cada semestre.
De qualquer forma, uma Micro Sistemas nova deixava-me feliz e orgulhoso,
envaidecido mesmo (como dizia o Stanislaw Ponte Preta) por semanas. Um
anúncio, entretando, deixou-me mais excitado do que de costume. Alguém havia
desenvolvido um jogo, nacional, melhor do que qualquer coisa que eu já havia
visto, para o meu (perdoem-me a expressão) fodido TK-85. Era um clone do
"Pitfall", sucesso absoluto do Atari.
O anúncio, de página inteira, era de encher os olhos. "Em Busca dos
Tesouros" era muito, muito legal. E tinha sido feito por um brasileiro,
aluno de eletrotécnica no Rio Grande do Norte. Do alto dos meus nove anos,
entretanto, conseguir uma cópia era, basicamente, impossível: eu nunca ia
conseguir convencer ninguém a enviar um vale-postal de sei lá, 5 dólares, em
troca de algo tão abstrato quanto um "programa de computador".
Passam-se, então, quinze anos. Nesse meio tempo, eu me vou embora de São
Francisco (o que causou, no início, uma enorme satisfação, e que hoje, por
incrível que pareça, é motivo de alguma saudade), entro numa roubada ou
outra e acabo terminando o bendito curso de Ciência da Computação. Algum
tempo depois, vejo-me em morando em Paris, e passeando na Inglaterra, depois
de apresentar um artigo, "nas coxas", em uma conferência em Sheffield. Lá,
no Museu de Ciências de Londres, sinto uma pontada de nostalgia, quando
vejo, dentro da redoma de vidro, os computadores que tinham uma vez sido os
meus sonhos de consumo (e que hoje são, merecidamente, peças de museu: o
protótipo do Apple I, o ZX-80, e por aí vai).
Foi então que, de súbito, surgiu de volta a imagem do bendito "Em Busca dos
Tesouros". Sei lá porque me lembrei dele; talvez porque tenha sido o
primeiro jogo de computador que tenha me impressionado. Voltei a Paris
obcecado pelo software. Escrevi para Deus-e-todo-mundo, perguntando se
alguém tinha uma cópia. Sugeriram-me um grupo de colecionadores, cuja lista,
a canal3, era referência no assunto. Minha frustração só aumentou quando
descobri que o pessoal de lá também estava procurando pelo mesmo programa, e
que não tinham conseguido nada significativo ainda.
Durante uma semana, eu fiz de tudo para encontrar o bendito "Em Busca dos
Tesouros". Escrevi para o Renato Degiovani (que foi editor da Micro Sistemas
por um bom tempo) e para todo mundo da editora cujo nome eu me lembrava.
Pedi a lista de ex-alunos do CEFET-RN (onde o autor havia estudado)... Tudo
foi inútil. A única referência, fornecida por um membro da Canal 3, era um
endereço, aparentemente incorreto, do autor. Resolvi que ia mandar uma carta
pra lá mesmo assim, quando fosse ao Brasil.
Quando finalmente admiti que a busca seria infrutífera, surpreendentemente,
ao som da trilha sonora de "Águia de Fogo", li o e-mail contendo o link para
o jogo. Confesso que fiquei ansioso, suando frio (talvez fosse culpa da
quantidade absurda de cerveja consumida horas antes). Não podia imaginar
que, quinze anos depois, eu ia (finalmente) poder jogar o "Em Busca dos
Tesouros".
Com alguma reverência, instalei e executei o emulador que iria me permitir
ver o bendito programa funcionando (meu TK-85 está há muito perdido em algum
lugar na casa da minha avó em Montes Claros; prometo que vou ressucitá-lo,
qualquer dia desses).
A sensação obtida foi uma das mais estranhas que eu poderia imaginar. Não
era saudade ou nostalgia, pois afinal de contas era a primeira vez que via o
jogo funcionando. Também não era mera curiosidade "arqueológica". Era como
se eu recuperasse alguma coisa, como se eu fosse novamente um moleque de
nove anos descobrindo o que se podia fazer com um "computador".
"Que tempo bom, que não volta nunca mais". Que saudade fodida. Fodam-se o
meu Playstation 2, o meu Game Boy Advance com Afterburner e Flash Advance, e
o meu notebook. Foda-se até o telefone, para falar a verdade. Até amanhã de
manhã, eu vou ter nove anos de novo, para jogar "Em Busca dos Tesouros" e
para me imaginar com uma "Águia de Fogo" guardadinha na garagem.
Muriloq
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